segunda-feira, 11 de maio de 2015

«Que destino queremos para o mirandês?»

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«Há mil anos, dizem, já se falava mirandês. Talvez fosse um pouco diferente, mas era mirandês. Uma língua que teimou a permanecer numa pequena ilha, cercada pelo mar que é o português e o castelhano. Se morrer, com ele morrerão de novo todas as pessoas que nestes mais de mil anos a falaram. Então, ficamos com um enorme problema: nem em toda a Terra de Miranda há espaço para enterrar tanta gente. Por isso, como almas penadas, ficaremos condenados a chocar constantemente com os esqueletos da língua que morreu.
No passado, há muitos anos, obrigaram-nos a falar português. Disseram-nos que o mirandês não era uma língua de gente ou, então, era uma língua de gente estúpida, atrasada. Os reis obrigavam as pessoas a fazer os documentos oficiais em português. Os enviados do rei vinham a Miranda e falavam português. O português era a língua dos ricos e do poder e, com o tempo, o mirandês foi-se identificando como fala dos pobres, como fala do campo.
Passou a andar por aí a lavrar, a ceifar, a cavar, a vindimar, a regar, a apanhar rosmaninho para estrume, a apanhar lenha, a caminhos, a apascentar as mulas ou as vacas. Foi língua de raiva, mas também de embalar; língua deste inferno de mete pé saca pé e língua de sonhar com vidas melhores; língua de ralhar e língua de torna-jeira ou torna o burro; língua de chorar e língua de festas e de dançar; língua de morrer e língua de nascer.
Que destino queremos para o mirandês? Nos últimos trinta anos, a Terra de Miranda encheu-se de doutores, de jornais, de rádios, de televisões. Mas não há doutores em mirandês. Um mirandês é pobre e não terá dinheiro para televisões.
Nos últimos trinta anos, muitas coisas que falavam mirandês foram desaparecendo, mortas ou escondidas onde ninguém as veja: arados, relhas, charruas, carros de mulas e carros de bois, albardas, molhelhas, jugos, caniças para a palha, forquilhas de madeira e de ferro, trilhos, foices, picotas, foices de cabo comprido, cestos vindimadeiros, cestos estrumeiros, cilhas, cargas e arrochos, cabeçadas, malhos, molhos de colmo, forjas, fornos, eiras e tantas, tantas coisas.
Nos últimos trinta anos, a língua foi sendo expulsa das casas: os contos já não sobem pelas chaminés, já não come à mesa, já não dorme na cama. Na rua, quando ela passa, já há quem a olhe de lado. A continuar assim, sem eira nem beira, há de morrer de frio, numa noite de Inverno, debaixo de algum telheiro onde, por caridade, lhe permitiram dormir".
Exaltação mais bonita, de amor e vísceras, de furor contido, de homenagem à terra e aos seres humanos, não se conhece ou, vamos lá para não pecar por excesso, não se encontra todos os dias. E que nos deixa uma amarga saudade deste mirandês excelso que se chamará sempre Amadeu Ferreira.»

Autor: Beja Santos

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